RETRADUZIR LÉLIA GONZALEZ: UMA TRADUTORA E DUAS TRADUÇÕES
Estudos da tradução; tradução decolonial; retradução; Lélia Gonzales; ética da tradução.
O objeto desta dissertação é a retradução para o francês de um texto que eu já havia traduzido no meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de bacharelado em Letras-Tradução-Francês, defendido em 2021. Trata-se dos dois primeiros capítulos do livro Primavera para Rosas Negras, um conjunto de ensaios da escritora negra brasileira Lélia Gonzalez, publicado em 2018 pela editora Filhos da África. Produzir uma retradução desses textos, com base em uma análise crítica e comparada das minhas próprias estratégias tradutórias nos dois momentos e a partir de um distanciamento e amadurecimento intelectual e político, constitui o objetivo geral deste trabalho. Esse processo de retradução é um exercício de atualização linguística, mas também política e ética. Os desafios dessa tradução e da sua retradução configuram-se pelo contexto feminista da época em que Lélia Gonzalez escreve, nos anos 70, colocado em perspectiva com os dias de hoje, momento em que traduzo. Lélia atuou ativamente em meio à ditadura militar, quando a questão antirracista estava mudando de cara, com a ideia de “democracia racial”. Sua obra buscava então esclarecer a população negra sobre sua posição desvantajosa na sociedade, para, assim, contribuir com a constituição do sujeito político da luta antirracista. Esse processo de tradução e retradução de Lélia Gonzalez foi marcado pela questão da outridade: como eu, tradutora branca franco-brasileira, devo traduzir hoje um texto de uma militante negra para o francês, tendo em mente o lugar de fala e de privilégio da branquitude na sociedade brasileira e o lugar autorizado à/aos negra/os? Outra questão central do trabalho é o próprio processo de retradução: produzir uma nova tradução de um texto que eu já havia traduzido anteriormente trouxe à tona reflexões sobre a relação atualizada com o texto de partida e com a autora, mas também sobre a relação com a minha primeira tradução e comigo mesma. Para abordar tais questionamentos, tomei como esteio uma teoria crítica da tradução e da retradução, com ênfase na perspectiva decolonial, que inaugura a crítica ao eurocentrismo das ciências sociais e do feminismo ocidental. Ao final deste processo, chego a uma conclusão: para além das questões políticas, emergiram questões relativas à escrita tradutória enquanto relação ética e estética. Embora eu tenha escolhido traduzir para o francês uma obra brasileira emblemática da realidade de uma mulher negra no Brasil para ampliar o seu acesso a outras comunidades linguísticas, minha tradução e retradução se manifestaram inevitavelmente nas minhas próprias palavras, por vezes de forma empática, por vezes, violenta.