Estudo do grau, do padrão de regressão tumoral e da distribuição da doença residual na parede retal e no mesorreto em indivíduos com câncer do reto tratados com radioquimioterapia neoadjuvante seguida de excisão total do mesorreto.
câncer do reto, radioquimioterapia, neoadjuvante
O câncer colorretal é uma das malignidades mais prevalentes. Estima-se que sejam diagnosticados mais de 1 milhão e oitocentos mil casos novos no mundo todo para o ano de 2022.(1,2) Para o Brasil, no ano de 2022, é estimado que sejam diagnosticados 40 mil casos novos, com pelo menos um quarto destes localizado no reto.(3)
Para facilitar a padronização do tratamento, o reto é dividido em 03 partes: terço inferior, médio e superior. A partir da margem anal, o terço inferior extende-se do intróito anal até 7 cm, o terço médio localiza-se entre 7 e 12 cm e terço superior entre 12 e 15 cm.(4)
Anatomicamente o reto encontra-se circundado por uma gordura denominada mesorreto. Este, por sua vez, é recoberto pela fáscia endopélvica parietal. Os limites anatômicos do mesorreto e de sua fáscia são fundamentais para o planejamento do tratamento pré-operatório e cirúrgico.
Por sua vez, histologicamente o reto é composto pelas camadas mucosa, submucosa, muscular e pela gordura perirretal. A mucosa é a camada mais interna e composta por epitélio colunar intestinal simples. A submucosa contém tecido conjuntivo frouxo, vasos sanguíneos e folículos linfóides. A muscular é dividida em camada circular e longitudinal e entre elas há os plexos mioentéricos de Auerbach. (5)
Todos os tumores malignos passam por um processo de investigação sobre a sua extensão denominado estadiamento. No câncer do reto aplica-se a classificação TNM onde estima-se, por meio de exames de imagem, a profundidade de penetração na parede (T), a presença ou ausência de comprometimento linfonodal (N) e presença ou não de metástases (M). Essas informações, por terem sido obtidas em um contexto clínico, devem ser precedidas pela letra c (cT e cN).
Os casos de câncer do reto que necessitem de radioquimioterapia pré-operatória (neoadjuvante) passam por novo estadiamento local. Este visa avaliar a resposta do tumor à neoadjuvância. Nestes casos, utiliza-se a letra y antes da classificação TN (yT e yN).
Da mesma forma, a descrição do estádio T e N, na peça operatória de tumores do reto que passaram por radioterapia neoadjuvante, deve ser precedido pela letra y e pela letra p (ypT e ypN).
Os tumores T1 estão restritos à submucosa, os T2 comprometem até a muscular retal, os T3 invadem o mesorreto e os T4 comprometem estruturas adjacentes. Por sua vez, a classificação N0 corresponde à ausência de comprometimento linfonodal, a N1 há comprometimento de até 3 linfonodos no mesorreto e a N2 há comprometimento de 4 ou mais linfonodos. Os tumores T1 e T2 são considerados como estádio I. Os T3 e T4 compõe o estádio II e os N1 e N2 formam o estádio III. Quanto maior o T ou o N, pior o prognóstico. (6)
Nas últimas décadas, o tratamento do câncer do reto passou por duas importantes mudanças: a padronização da técnica operatória e a utilização de radioquimioterapia em doses e momentos diferentes. Essa combinação tem diminuído a recorrência local e aumentado a sobrevida.
Entre as décadas de 1970 e 1980, o tratamento do câncer do reto era exclusivamente operatório. Os resultados eram ruins com taxas de recorrência local acima de 50%. Em 1985 é publicado o primeiro estudo fase III, multicêntrico, prospectivo, composto por indivíduos com câncer do reto que foram randomizados para um de 04 grupos: operação exclusiva, operação com radioterapia pós-operatória, operação com quimioterapia pós-operatória ou operação com radioquimioterapia pós operatória. A maior taxa de recorrência local foi no grupo de operação exclusiva (55%) e a menor foi no grupo de operação radical seguida por radioquimioterapia (33%). Mesmo assim, recorrência local em um terço dos participantes era considerado inaceitável.(7)
Em 1982, Bill Heald publica a padronização da técnica operatória a ser utilizada no tratamento do câncer do reto. Este autor propunha que o reto, o mesorreto e a fáscia mesorretal deveriam ser cuidadosamente dissecados e removidos em bloco, de modo que a peça não apresentasse qualquer defeito. Esta técnica padronizada recebe o nome de Excisão Total do Mesorreto (TME). Em 1986, Heald e cols. relatam uma série prospectiva de pacientes com câncer do reto distal, tratados por excisão total do mesorreto, e demonstram uma taxa de recorrência local de apenas 3,7%.(8,9)
À época, a busca por melhores resultados permaneceu e é iniciado a pesquisa sobre o uso da radioterapia isolada no pré-operatório. O raciocínio baseava-se na premissa de que as células tumorais estariam com melhor suprimento sanguíneo e maior oxigenação antes da operação, o que facilitaria a ação da radioterapia.
A radioterapia pré-operatória pode ser aplicada na forma de curso curto ou curso longo. No curso curto, a dose empregada é de 2500 cGy e entregue em 5 dias. Por sua vez, no curso longo, a dose empregada geralmente é de 5040 cGy e entregue ao longo de 28 dias. A radioterapia de curso longo é realizada concomitantemente à quimioterapia baseada na 5-Fluorouracil.
Existem diferentes formas e momentos de combinar a radioterapia com a quimioterapia no contexto neoadjuvante. Nos últimos anos tem tido destaque a chamada terapia neoadjuvante total (TNT), onde a dose de quimioterapia habitualmente entregue no pós-operatório é entregue no período pré-operatório. A TNT busca aumentar a resposta local do tumor, tratar a possibilidade de uma doença micrometastática e diminuir a toxicidade.
Em 2002, são publicados os resultados do Dutch Trial com nítido benefício da radioterapia neoadjuvante de curso curto no tratamento do câncer do reto. Trata-se de estudo multicêntrico, prospectivo e randomizado, onde indivíduos com câncer do reto ressecável foram alocados em um de 02 grupos: TME exclusivo ou radioterapia de curso curto seguido por TME. O grupo com radioterapia apresentou menor taxa de recorrência local (2,4% X 8,2%), mas sem impacto na sobrevida global.(10)
Por sua vez, o German Trial representou o grande divisor de águas no tratamento do câncer do reto localmente avançado. Trata-se de trabalho multicêntrico, prospectivo, onde pacientes com câncer do reto estadio II ou III foram randomizados para tratamento complementar pré-operatório versus pós-operatório com radioterapia, na dose de 5040 cGy (curso longo), associada à fluorouracil (5-FU) na forma de infusão contínua. Todos pacientes foram submetidos à excisão total do mesorreto. Houve claro benefício para o tratamento pré-operatório em relação ao pós-operatório. As taxas de recorrência local e toxicidade aguda foram menores no grupo pré-operatório, sem impacto em sobrevida global.(11)
Fato interessante passou a ser observado nesses trabalhos que avaliaram o uso de radioquimioterapia neoadjuvante. Em torno de 10 a 30% dos pacientes não apresentavam células tumorais na análise microscópica da peça operatória. Este fenômeno passa a ser chamado de resposta patológica completa (pCR) e a sua ocorrência mostra-se associada a excelentes resultados, tanto de recorrência local quanto de sobrevida.(12)
Justamente pela possibilidade da ocorrência de pCR, passa-se a questionar a necessidade de operação radical neste grupo de doentes. Uma vez que, a excisão total do mesorreto configura-se em técnica operatória complexa, associada à elevada morbidade e até mesmo mortalidade. Parte dos pacientes evolui com disfunções anorretais, urinárias e sexuais, além da possibilidade de estomas temporários ou permanentes.(13,14,15,16) Portanto, não parece racional submeter pacientes a uma operação de grande porte sem que nenhuma célula tumoral seja encontrada na peça operatória.
A partir desse fato, Habr-Gama e cols., em 2004, de forma pioneira, publicam um artigo que significou uma quebra de paradigma. Neste estudo, 265 indivíduos com câncer do reto distal, estadios II e III, foram tratados por radioquimioterapia neoadjuvante padrão de longo curso. Após 08 semanas do término da mesma, eles foram reestadiados. Os participantes (71 indivíduos) nos quais não se identificou mais o tumor, tanto ao exame clínico-endoscópico como nos exames de imagem, foram considerados como respondedores completos, definido como resposta clínica completa – cCR, não foram operados e passaram a serem acompanhados de forma regular e cuidadosa. Os demais participantes, onde se visualizou lesão residual, foram operados pela técnica de excisão total do mesorreto. Dentre os pacientes operados, 22 apresentaram pCR à análise da peça operatória. Partindo-se do pressuposto que os melhores resultados oncológicos são observados em indivíduos que atingiram pCR, a autora comparou os resultados dos participantes que atingiram cCR com os que tiveram pCR. Não houve diferença em termos de sobrevida e recorrência local entre indivíduos que tiveram pCR com os que atingiram cCR. Essa abordagem sem operação inicialmente em indivíduos que tiveram cCR, com seguimento regular e cuidadoso, recebeu o nome de estratégia Watch and Wait e é considerada uma estratégia de preservação de órgão.(17)
A outra estratégia existente de preservação de órgão, para indivíduos altamente selecionados, no tratamento do câncer do reto é a excisão local após o uso de radioquimioterapia. Em princípio possui morbi-mortalidade menor que a excisão total do mesorreto, e ainda propicia análise histológica para definição do estadio T tumoral.
O estudo CARTS (Capecitabine, Radiotherapy, TEM Surgery), holandês, incluiu 47 participantes com câncer do reto (T1-3 N0), os quais foram submetidos à radioquimioterapia neoadjuvante de longo curso seguida por excisão local, através da técnica Microcirurgia Endoscópica Transanal (TEM), 08 semanas após o término da neoadjuvância. Excisão total do mesorreto foi indicada para os tumores ypT2, enquanto os tumores ypT0 e ypT1 foram observados. Somente 04 recorrências locais foram identificadas, sendo 03 delas em participantes ypT2 que não aceitaram a cirurgia radical.(18)
A grande dificuldade na implantação da estratégia Watch and Wait e da Excisão Local é a seleção correta dos indivíduos. Diversas publicações tem sido feito a esse respeito. Entretanto, pesquisa sobre a doença residual neoplásica no reto e do seu padrão e grau de regressão é rara. Vale lembrar que a maioria dos doentes não atingirão pCR e terão doença residual nas peças operatórias. Além disso, a identificação do padrão e grau de regressão tumoral e da distribuição da doença residual pode facilitar o emprego das estratégias de preservação do reto.
Tipicamente os tumores do reto apresentam ampla heterogeneidade celular.(19) Diferentes tipos de clones celulares tumorais terão diferentes respostas à ação da radioquimioterapia. Por consequência, é comum identificarmos na peça operatória áreas compostas apenas por fibrose contíguas a outras repletas por células tumorais.
Não obstante, até 40% dos tumores do reto antes da neoadjuvância terão extensão intramural além dos seus limites macroscópicos.(20) Ou seja, haverá microscopicamente células cancerosas intramurais além dos limites macroscópicos da lesão. Essas extensões tumorais microscópicas podem ter a mais diversa pluralidade de clones neoplásicos e, por conseguinte, diferentes formas de resposta à neoadjuvância. Em razão desses fatores, é difícil prever como será o grau, o padrão de regressão tumoral e a distribuição das células tumorais residuais no reto.
A radioquimioterapia induz alterações histológicas no reto com destruição celular e formação de fibrose em graus variados.(21) A proporção entre as células tumorais residuais e a fibrose formada representará o grau de regressão tumoral (TRG). A classificação do TRG mais utilizada é a de Mandard.(22) Onde os graus 1 e 2 representam a maior proporção de fibrose em relação às células tumorais e os graus 3, 4 e 5 o contrário. A princípio, o TRG 1 e 2 apresentam melhor prognóstico sobre os demais. Portanto, a identificação pré-operatória do TRG pode facilitar a identificação de possíveis respondedores completos e colocá-los em estratégias de preservação do reto.
O padrão de regressão tumoral no câncer do reto pode ser classificado como sólido ou fragmentado.(23) O tipo sólido parece ter uma regressão mais homogênea, com as células residuais comumente localizadas sob a área macroscópica remanescente. É mais raro a ocorrência de extensão tumoral intramural microscópica. O tipo fragmentado é o mais desafiador. Frequentemente composto por ampla heterogeneidade celular tumoral, possui áreas de resposta completa intercalado por grupos celulares tumorais. É comum a ocorrência de extensão intramural microscópica.
A compreensão do padrão de regressão tumoral pode definir as margens a serem utilizadas em uma excisão local, assim como em situações de tumores ultra-baixos que ameaçam à musculatura elevadora do ânus e que apresentaram uma grande resposta à radioquimioterapia neoadjuvante. Típica situação desafiadora, onde precisamos decidir entre uma amputação abdominoperineal ou uma operação com preservação esfincteriana.
Outro aspecto a ser estudado é como as células neoplásicas residuais estão distribuídas pelas diferentes camadas do reto. Segundo a American Joint Committee on Cancer – AJCC – o sistema de estadiamento que é utilizado no Câncer do Reto é o TNM.(6) Este é baseado na profundidade máxima de invasão tumoral na parede retal (ypT), no envolvimento dos linfonodos regionais e na presença ou não de metástases. Entretanto, essa classificação não informa a distribuição das células tumorais residuais. Esse conhecimento pode ajudar a desenvolver estratégias na identificação de respondedores completos antes da operação radical.