Confinamentos e penitências na Terra de Muitos Males: punição e encarceramento de indígenas Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul
povos originários; povos Guarani e Kaiowá; Mato Grosso do Sul; criminologia decolonial; encarceramento de indígenas.
Trata-se de tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), inserida no âmbito da Linha de Pesquisa intitulada “Criminologia, estudos étnicos- raciais e de gênero” e que tem o objetivo de analisar, simultaneamente, os impactos do encarceramento promovido pelo Estado sobre os indígenas Guarani e Kaiowá, situados em Mato Grosso do Sul, bem como investigar se, e sob quais requisitos, são aplicadas formas de resolução de conflito alternativas à prisão. Almejamos compreender para quais tipos de crimes ou transgressões aqueles povos valem-se de métodos tradicionais de resolução e para quais condutas recorrem à punição estatal, além de buscar investigar como se dá a execução da pena privativa de liberdade de indígenas. Nossa hipótese é a de que não há um debate intercultural entre os povos originários e o Estado sul-mato- grossense, de forma a se exercer uma punição severa em detrimento da interculturalidade. A prisão define o lugar de marginalização dos indígenas (já que as condições de exclusão social dos indígenas insuflam a vulnerabilidade à criminalização) e serve à contenção dos movimentos indígenas de insurreição contra a expansão do agronegócio, marca da formação histórica do Mato Grosso do Sul. Para tanto, a pesquisa é dividida em duas partes: na primeira, descrevemos a interseccionalidade entre os saberes antropológico e criminológico, a partir do exame do nascimento de ambas as ciências no contexto do século XIX, e a subserviência destas ao controle da alteridade não europeia. Uma vez traçadas as similitudes da funcionalidade de ambas as ciências (ao menos em sua originação), problematizamos a duração do viés positivista na criminologia, que encara os agentes como indivíduos naturalmente destinados à criminalidade, sendo os indígenas os exemplos dessa natureza delituosa. Feita a análise, criticamos a construção da criminologia eurocêntrica, que estende suas teorias universalmente para a compreensão de fenômenos que são, porém, cultural, social e historicamente situados. A crítica tem a influência decolonial, pós-colonial ou latino-americanista, que sugere um processo de decolonização para reposicionar as margens e o centro do saber criminológico, em especial sob a perspectiva dos povos originários. Nesse sentido, encetamos um breve estudo das prisões brasileiras com foco na punição de indígenas e examinamos a evolução da legislação sobre os regimes prisionais especiais. Por meio desse estudo, pretendemos confirmar a funcionalidade política na punição de indígenas, que denominamos, outrora, de penalidade civilizatória. Na segunda parte, analisamos como esse fenômeno se concretiza na criminalização de indígenas Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul, apresentando o histórico de formação do Estado e sua aversão às raízes étnicas indígenas. A postura anti- indígena revela-se no acirramento de conflitos territoriais, engendrando um quadro social de desestabilização e embasador de violência social, de sorte que a punição de indígenas se realiza como profecia autorrealizável ou como a contenção da contestação à ordem hegemônica. A partir de entrevistas semiestruturadas com indígenas em situação prisional ou de seus parentes, indicamos quais são as barreiras à interculturalidade e ao pluralismo jurídico e os efeitos da criminalização sobre os indígenas e suas comunidades.