SOBRE DENÚNCIAS E AFETOS: vivências negras e quilombolas no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília.
Escrevivência. Escutavivência. Aquilombamento. Antropologia. Epistemômetro.
Esta dissertação nasce de um corpo-território atravessado por águas salgadas e doces,
entre as marés de Upaon-Açu e a vereda de Brazlândia. Contar a própria trajetória, aqui, não é
gesto íntimo apenas, mas ato epistemológico capaz de deslocar o centro da produção de
conhecimento. A pesquisa se inscreve na confluência entre escrevivência e análise
institucional, respondendo à pergunta que me acompanha desde a graduação: o que mais uma
discente negra tem a dizer e que diferença essa fala pode fazer para a Antropologia? Partindo
da hipótese de que vivências pessoais, quando lidas como saberes, revelam lacunas estruturais
e sementes de transformação invisíveis às estatísticas, combino denúncia e celebração.
Denuncio as continuidades racistas nas práticas e currículos do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade de Brasília e, simultaneamente, celebro a presença
quilombola nas trajetórias e ensinamentos de Rosiene Kalunga e Sirlene Desapocada, que
produzem modos concretos de acolhimento, resistência e formação de novas antropologias. O
problema central é o da permanência epistêmica e subjetiva de pessoas negras e quilombolas
em um programa que, embora tenha aberto portas, mantém padrões monoepistêmicos e
práticas hostis. Em vez de crítica apenas retórica, investigo como essas práticas se
manifestam nas ementas, escolhas bibliográficas, rotinas pedagógicas e relações
institucionais, e como, na contramão delas, surgem estratégias de aquilombamento. A
justificativa é dupla: contribuir para debates sobre descolonização curricular e pluralidade
epistêmica, aplicando empiricamente o instrumento Epistemômetro para diagnosticar
monocentralidades; e nomear/documentar práticas de exclusão frequentemente naturalizadas,
visibilizando formas de cuidado e produção de conhecimento que a academia tenta apagar.
Metodologicamente, assumo a escrita autobiográfica como método (escrevivência), valorizo a
escutavivência como prática quilombola e combino autoetnografia, observação participante,
entrevistas e análise documental de ementas e bibliografias. O Epistemômetro organiza dados
por procedência, idioma, gênero, autorias negras e indígenas e temas centrais, articulando
análise quantitativa e qualitativa. As relações com Rosiene Kalunga e Sirlene Desapocada não
são estudos de caso, mas coautorias epistemológicas que orientam escolhas metodológicas e
éticas. A denúncia se ancora em evidências documentais e testemunhos, visando
transformação e não revanche. Os objetivos são: analisar como estruturas curriculares e
práticas institucionais reproduzem padrões eurocêntricos que dificultam a permanência e o
reconhecimento de saberes negros/quilombolas; mapear estratégias de acolhimento,
resistência e formação produzidas por mulheres quilombolas; e propor encaminhamentos para
uma antropologia pluriepistêmica. A dissertação organiza-se em quatro capítulos: trajetória e
formação subjetiva; memória quilombola e práticas de cuidado; diagnóstico do PPGAS via
Epistemômetro; e propostas de reexistência epistemológica e institucional. Ao costurar
denúncia, análise e afeto, defendo que a Antropologia só se tornará plural quando confluir
com saberes nascidos também nas cozinhas, rezas, rodas e travessias. Para além de um texto
acadêmico, este trabalho é testemunho, diagnóstico e proposta, nomeia violências e celebra
possibilidades para que outros possam, como eu, existir e formar-se como antropólogos,
antropólogas e antropologues de mundos possíveis e já existentes.