SANKOFA NA COZINHA CERRATENSE: TECITURAS GEO-HISTÓRICAS DE MEMÓRIAS IDENTITÁRIAS
Cozinha tradicional, Bioma Cerrado, Decolonialidade, Patrimônio Cultural, Geografia de Alimentos, Território.
Esta pesquisa parte do pressuposto de que cozinhas tradicionais não são construções aleatórias, mas expressões diretas das relações entre necessidades humanas, biodiversidade local e saberes coletivos acumulados. O foco recai sobre a formação da cozinha cerratense, especialmente nas regiões do nordeste goiano, sudeste tocantinense e oeste baiano — territórios historicamente habitados por comunidades rurais: indígenas e negras, cujas práticas alimentares foram moldadas por adversidades, resistências e trocas culturais. O problema central da investigação reside na dialética do apagamento e da negação da história alimentar das populações do Cerrado. Esse processo teve início com a domesticação milenar praticada por grupos indígenas, foi interrompido e negado pelos colonizadores europeus, e posteriormente ressignificado pelos negros africanos escravizados que, nos quilombos, reconstruíram formas de vida a partir dos insumos disponíveis e dos saberes ancestrais vindos da África. A sinergia entre essas experiências e o conhecimento de grupos indígenas refugiados nos quilombos configurou uma cozinha marcada pela adaptação e criatividade. O recorte temporal da pesquisa abrange do século XVII até os dias atuais. A investigação adota uma abordagem etnometodológica, ancorada em estudos de geo-história, para compreender a constituição da alimentação como patrimônio. São analisados elementos como técnicas culinárias, instrumentos tradicionais, insumos regionais e simbolismos cotidianos. A oralidade é valorizada como instrumento legítimo de transmissão de saberes, em contraponto à hegemonia da escrita, evidenciando a cozinha como lugar de memória, pertencimento e vínculo com a terra. A vivência da autora no Cerrado e sua atuação como docente da Universidade Federal do Tocantins favoreceram o desenvolvimento de ações de pesquisa e extensão, como o projeto “GOsTO – um punhado de mandioca e um bocado de Cerrado”. Dentre seus desdobramentos, destacam-se a criação do Festival Gastronômico de Arraias (2017–2020), a implantação de um laboratório de gastronomia e a participação em documentários sobre alimentação e heranças africanas no Brasil. A tese organiza-se em três eixos, inspirados no provérbio africano Sankofa: (I) Visitar o passado, abordando transumância, sertão, cerrado, africanidades e os legados femininos negros; (II) Ressignificar o presente, com ênfase na metodologia e nos conceitos de campo e habitus de Bourdieu, analisando o sistema alimentar, os saberes etnobiológicos e o ativismo alimentar; (III) Construir um futuro melhor, que articula os resultados do campo às memórias familiares da autora e às experiências de transumância do seu bisavô. A partir dessas vivências, desenvolve-se uma reflexão sobre a herança alimentar cerratense, entrelaçada às histórias de família e aos modos de vida no Cerrado. Essas trajetórias culminam na identificação das estruturas estruturantes da cozinha cerratense, revelando como as práticas alimentares se configuram não apenas como estratégias de sobrevivência, mas como formas de resistência, memória e identidade cultural. A pesquisa defende a cozinha como espaço ampliado — que vai além da casa e abrange produção, preparo, rituais e memória coletiva —, propondo o reconhecimento da cozinha cerratense como patrimônio cultural, enraizado em saberes ancestrais e em convivência harmônica com o bioma.